Minha vida pós-apocalíptica zumbi

Acordei hoje de manhã e tudo parecia normal. Levantei, lavei meu rosto, olhei no espelho, me achei o cara mais lindo do mundo, tomei meu café e acendi um cigarro. E foi aí que notei que a conta não batia: tinha alguma coisa errada.

É Carnaval e na rua onde eu moro, independente de ser ou não data festiva, sempre tem balbúrdia, principalmente na casa ao lado em que o casal vive saindo no soco por qualquer coisa – os dois se conheceram numa luta de boxe, se apaixonaram, se casaram e há uns quinze anos eles vivem nesse torneio infinito, é jab daqui, cruzado dali, gancho, enfim.

Mas hoje tudo estava muito silencioso. Nem um piu. Fui ver o que estava acontecendo e não estava acontecendo nada. Tudo deserto e quieto, a rua como um cemitério. Resolvi então fazer uma visita ao casal de pugilistas pra saber o que tinha acontecido. Apertei a campainha mas parecia não estar funcionando, então resolvi chamar em voz alta “Adalberto!” e nada, chamei mais uma vez e nada e quando estava prestes a chamar uma terceira vez ouvi uns grunhidos, antes pensei que fosse de cachorros mas não, os pugilistas não tinham cães, e os grunhidos foram ficando cada vez mais próximos e quando abri o portão (sim, o portão estava destrancado, dá licença, poética? obrigado) dei de cara com a mulher-pugilista-zumbi e logo atrás vinha o marido, ambos com o rosto verde e os dentes amarelados, e começaram a vir em minha direção, então meu primeiro pensamento foi voltar pra casa correndo, óbvio, mas – óh, que infortúnio! – havia uns quatro zumbis em frente de casa, entre eles o seo Neno, do mercadinho (ainda bem, pois eu devia 50 paus pra ele). “Tô fudido”, pensei.

Mas nem tudo estava perdido: eles ainda não haviam notado a minha presença e o casal-pugilista-zumbi estava atrás de mim a passos lentos, andando em velocidade de cruzeiro. A lerdeza deles me fez ganhar tempo pra pensar e ter a brilhante ideia de pular o muro dos atletas, ir até o quintal deles, pular o muro e cair no meu quintal. Entrei pelos fundos.

E é nesse ponto que o caldo engrossa: eu moro sozinho, meu cigarro tá acabando, tem pouca comida na despensa e uma quantidade razoável na geladeira; não tenho armas de fogo (nunca manuseei uma arma na minha vida) e estava praticamente ilhado, cercado por zumbis. Tudo o que eu tenho pra me defender é um taco de baseball que eu havia ganhado de presente no meu aniversário de nove anos e algumas facas de cortar pão.

E agora estou aqui, fumando um dos meus últimos cigarros enquanto olho pela janela a rua se infestando de zumbis esverdeados babando e grunhindo e tendo que assumir a responsabilidade por mim mesmo.

Além de, comparado a eles, me achar realmente o cara mais lindo do mundo.

Quando eu nasci, Eduardo e Mônica se conheceram. O Renato estava musicalizando os versos de Paulo de Tarso enquanto os Garotos Podres detestavam Papai Noel. Na época muitos empresários sofriam de Anarkophobia e na Televisão, cheia de Flores de plástico, deuses e Titãs entravam em guerra – era a Titanomaquia. Em uma Sociedade Alternativa (VIVA!), havia uma Pantera Cor-de-Rosa que caminhava elegantemente ao som de Glen Miller. O E.T. queria muito voltar pra casa e tentava dizer isso apontando seu dedo luminoso para o telefone… Uma Língua de Trapo saltava da vitrola enquanto um casal se amava numa Lua de Mel em Cubatão. A Plebe Rude engatinhava em Brasília.

Ah, bons tempos… O Mago dizia que os Anos 80 era a “charrete que perdeu o condutor”. A Gata e o Rato viviam brigando mas não se desgrudavam (o Bruce era novo ainda).Mas, De Volta Para o Futuro, ainda espero ansiosamente pelo skate voador.

“Acabou.

Escrevi meus sonhos em uma folha de papel, piquei em um milhão de pedacinhos e atirei pela janela do décimo segundo andar do meu apartamento.

Agora me encontro sozinho em uma sala com quatro portas, uma à minha frente, atrás de mim tem outra, uma outra à minha esquerda e mais uma porta à direita. Tento abi-las mas em vão. Estão todas trancadas. Não há mais nada que eu possa fazer.

Acabou”

(Henry McCoy)

A Garça e a Coruja

Algo bem peculiar me aconteceu na semana passada. Eu voltava da casa de uma garota a qual eu fizera chorar e estava me sentindo muito chateado e frustrado por não ter conseguido reatar os laços de afeto que outrora haviam nos unido. Enquanto eu caminhava e ficava roendo as correntes do passado, prestes a cair na fossa da lamentação e me afundar de vez na merda da culpa e do remorso, o fato inusitado me desviou o foco e me salvou de um possível desastre emocional.

A estrada era de terra cercada por uma paisagem bucólica, com pastos, árvores e uma grande variedade de flores. O céu estava claro e sem nuvens e o sol parecia estar sereno e tranquilo proporcionando uma temperatura bem agradável. Foi então que eu ouvi um zumzumzum. Olhei ao meu redor e não encontrei ninguém. Procurei novamente pelo murmurinho e, prestando bem atenção, encontrei, não muito distante de onde eu estava, uma coruja e uma garça empoleiradas no galho de uma árvore. Com muito cuidado para não ser visto e para não espantá-las, me dirigi a uma rocha que ficava bem próxima das aves a fim de me esconder e poder ouvir aquele diálogo fabuloso.

A Coruja reclamava para a Garça o seguinte:

– Puta que o pariu… Já tô de saco cheio! Ninguém aqui gosta do meu canto! Quer saber? Vou embora desse lugar.

A Garça lançou um olhar desdenhoso para a Coruja, fez um instante de silêncio e com um ar de reprovação respondeu:

– Companheira, vá para aonde quer que seja, se não mudar o seu canto, ninguém vai gostar de você.

Depois de ouvir essas palavras, voltei para a estrada e retomei a minha caminhada, agora com o coração mais tranquilo. A Garça tinha razão. Eu precisava ver em mim o que aquela garota queria encontrar. Se eu não mudasse os meus padrões de pensamento e de comportamento jamais conseguiria fazer sorrir aquela a qual eu, um dia, havia feito chorar.

Essência

Os primeiros órgãos a serem devorados pelos vermes são os olhos. E são eles que perdem o brilho assim que morremos.Certa vez estava eu e uma amiga sentados num banco de uma praça, quando um homem embriagado se aproximou de nós e começou a falar da sua esposa. No final da narrativa ele conclui: “ela morreu nos meus braços e pude ver que seus olhos perderam o brilho”.Mas não é necessário que estejamos organicamente mortos para que nossos olhos percam o brilho. Basta que percamos nossa essência.É somente no olhos-nos-olhos que podemos sentir a manifestação da Verdade, da Essência, do Uno, do Eu.

Em 6 meses eu acompanhei os últimos capítulos da novela O Sétimo Guardião e os primeiros capítulos da novela A Dona do Pedaço; acompanhei também os últimos capítulos da novela Espelhos da Vida e os primeiros capítulos da novela Órfãos da Terra; e, finalmente, acompanhei os últimos capítulos de Malhação Vidas Brasileiras e os primeiros capítulos de Malhação Toda Forma de Amar.

Daí deu nisso:

INT. SALA DE ESTAR DA MANSÃO DE
ARMANDINHO – NOITE

ARMANDINHO, um self-boy marombado rato de academia, sentado no sofá de couro, celular na mão, fazendo pose pra tirar uma self. Em outro sofá, JU MARIA, noiva de ARMANDINHO, sentada de pernas cruzadas, mãos no joelho, com cara de tédio.

JU MARIA
ARMANDINHO, você não se desgruda desse celular, né? Até parece que não me ama mais. Você me ama, ARMANDINHO?

ARMANDINHO
Amo.

JU MARIA respira fundo, se levanta bruscamente, estufa o peito, empina o nariz, ajeita a saia. ARMANDINHO faz outra pose pra tirar outra self.

JU MARIA
Já chega, ARMANDINHO! Tomei uma decisão: está tudo acabado entre nós!

JU MARIA pega a bolsa, joga os cabelos pro lado, coloca as mãos na cintura. ARMANDINHO faz outra pose pra tirar outra self.

JU MARIA
Vou embora pra casa da mamãe!

ARMANDINHO
Leva uma blusa que vai esfriar.

JU MARIA sai a passos firmes. ARMANDINHO faz outra pose pra tirar outra self.

O Dragão de Bessel, originário das Montanhas da Morte, região de Eloah, cemitério de diversas criaturas fantásticas, lugar em que o sol nunca brilha, destruiu a aldeia de Naãn, província de Adjerazan, e que, em época não muito distante, engoliu vivo o rei Jezediel.

Monstro fantástico era esse dragão. Possuía uma cabeça de serpente sobre um pescoço de cavalo, quatro pernas de bode e patas de águia, corpo de leopardo, uma cauda de escorpião e um par de asas de ganso. Suas escamas eram de rubis, suas unhas, de jade, os dentes de diamantes, os olhos negros de opala e as penas eram de seda de um azul celeste. Seu rugido soava como o grito agonizante de cem bebês sendo queimados vivos.

Foi derrotado por Apollyon, O Plebeu, com sua espada de marfim retirada das presas dos elefantes gigantes, forjada pelos Sete Magos da longínqua região de Ooudanadá ou Terra Inexistente. Conta que Apollyon, O Plebeu, ao ser reconhecido pelo Concílio dos Anciões como o homem mais honesto de todo o mundo, recebeu a Espada de Marfim de Chang-Ti, a Divindade Celeste e, desta mesma divindade, recebeu também a habilidade de se tornar o mais bravo e honrado guerreiro. Apollyon, O Plebeu, derrotou o Dragão de Bessel com apenas um único golpe, decepando-lhe a cabeça, e, após esse episódio, o guerreiro tornou-se uma lenda em toda a Terra Fantástica.

TOC! TOC! TOC!

Manhã de domingo.

Alguém bate à porta.

Atendo:

– Pois não?

– Bom dia! Tudo bem? Meu nome é TOC. O senhor teria um minutinho da sua atenção pra falar de insanidade?

– Mas é claro! – respondo com um sorrisão amarelo, típico de quem foi despertado cedo no domingo por alguém que insistentemente batia à minha porta. – Aceita um café?

– Mas é claro!

Com a maior amabilidade e cordialidade do mundo, retiro do fogão uma leiteira de café.

– O senhor fuma?

– E como!

Ofereço a ele um cigarro.

– Acho que um só não será o suficiente, senhor… Uns dois, três pacotes, talvez.

Café e cigarros a postos, peço a ele que se sente.

Depois de se sentar cuidadosamente no sofá e de organizar meticulosamente em cima da mesinha os papéis que trazia em sua pasta, meu convidado deu uma tossidinha leve e prosseguiu:

– Muito bem, antes de começarmos a nossa conversa, notei que o senhor possui em sua parede uma réplica de “A Mulher Chorando” de Pablo Picasso.

– Ah sim… Comprei de um camelô na Avenida Paulista.

– Será que o senhor me permite…?

Olhei para o quadro e depois para o meu convidado e respondi:

– Por favor, fique à vontade!

Lentamente e com muita sutileza, meu entrevistador se levantou, caminhou até o quadro e o aprumou. Em seguida se afastou uns dois passos e, ainda não satisfeito, tornou a endireitar o quadro.

– Pronto! Agora está perfeito! Mais uma pergunta: o senhor trancou a porta?

Não me lembrava se havia ou não trancado a porta.

– Pra ser honesto, não me lembro.

– Posso?

– Sim, claro.

Ele foi até a porta, trancou e destrancou cinco vezes a fechadura que era, segundo dizia, para ter a certeza absoluta de que estava realmente e seguramente trancada. Em seguida olhou para as próprias mãos e perguntou onde ficava o banheiro.

– Segue até o fim do corredor, a última porta a esquerda.

– Sabe como é… são os germes… – disse-me ele como quem pede desculpas.

Enquanto eu bebia a duodécima xícara de café e me preparava para acender o décimo sexto cigarro, fui surpreendido por um grito de pavor. “Que porra é essa!?”, pensei. Num átimo levantei e fui ver o que tinha acontecido.

Sucedeu foi o seguinte: meu ilustre visitante estava literalmente grudado em uma das paredes tal qual um chiclete, os olhos esbugalhados, respiração ofegante, os cabelos eriçados como se tivesse na cabeça um porco-espinho. Parecia que tinha sido atingido por um raio.

– Pelamordedeus! Tira esse bicho daqui!

Era meu gato, o Mequetrefe, sentado no meio do corredor com cara de quem não tava nem aí pra coisa alguma. Peguei o gato e tirei ele do meio do caminho indicando que a passagem tava livre.

Mais calmo, o visitante inesperado foi até a porta do banheiro, olhou pra mim e apontou pra porta fechada. “Mais essa agora!”. A contragosto fui até lá, abri a tal porta e ele finalmente entrou. Não demorou muito e lá vem ele com a cabeça pra fora do banheiro.

– Tem um sabonete novo?

Peguei o bendito sabonete.

– Aqui está.

Quinze minutos depois, ouço um pedido:

– Sem querer ser chato, o senhor não teria toalhas de papel?

Eu tinha.

Enquanto enxugava as mãos ele me olhava bem nos meus olhos com uma expressão interrogativa. Por sorte, minha irmã, que é tatuadora, deixou em casa, há dois dias, não sei o porquê, uma caixa de luvas de látex.

– Só um minutinho que vou buscá-las – disse eu, num tom áspero, indo buscar de mui má vontade as tais luvas.

Mãos lavadas, luvas calçadas, quadro aprumado, estava tudo pronto para o tão esperado início da conversa quando, de repente, meu irritante visitante parou no meio da sala de estar e, parado feito uma estátua de cera, passou a escanear tudo o que estava ao seu redor. Com uma voz e um jeitão de general disse que era pra fazer uma faxina, que havia muito pó aqui e ali e acolá, que os livros estavam mal organizados e etc. e etc..

Começamos por tirar o pó dos livros, dos móveis, do sofá, bibelôs, vasos e tudo o que havia de objetos de decoração. Os livros de ficção foram todos organizados por ordem alfabética pelo sobrenome do autor e os livros dissertativos separados por ordem de assunto; os bibelôs foram organizados por ordem de tamanho enquanto outros foram dispostos de forma simétrica. Varremos, passamos pano e higienizamos os sofás; na cozinha lavamos toda a louça, organizamos os pratos por ordem de tamanho, separamos os talheres de acordo com sua função; na dispensa dispomos de acordo com os alimentos e prazo de validade – os mais antigos primeiro e os mais novos por último. Em seguida partimos para o quarto: camisas bem dobradas por ordem de cores; camisetas com camisetas, meias com meias, cuecas com cuecas, tudo bem dobradinho, cada qual em seu devido lugar. A cama militarmente arrumada; guarda-roupas impecável – pronto! tudo bem limpo e muito bem organizado.

Eram quase onze horas da noite quando acabamos a maratona. Eu estava exausto, esparramado no sofá, fumando meu último cigarro do penúltimo maço do antepenúltimo pacote. Meu visitante prestativo estava sentado no outro sofá com os braços apoiados nos joelhos, olhos fixos no chão, pensativo, sem expressar o mínimo de cansaço. Em tom cordial disse:

– Bem, eu preciso ir.

Levantou-se maquinalmente e prosseguiu:

– Foi um prazer conversar com o senhor.

Lancei um esboço de sorriso é respondi:

– O prazer foi todo meu.

Assim que ele saiu, peguei meu celular é liguei pra Terapia.

O Filósofo e o Diabo

Certo dia, o Filósofo parou no meio da ponte suspensa Meigo, que liga os Vales da Compreensão às Colinas da Ilusão. Estava vindo de uma expedição que há muito vinha fazendo nos profundos vales da compreensão em busca da Verdade Absoluta. Na dúvida entre voltar aos vales e continuar a procura e seguir em frente rumo às ilusões, optou por meditar. Sentou-se com a face direita voltada para a compreensão e a face esquerda voltada para a ilusão, cruzou as pernas e fechou os olhos. De repente, às costas do Filósofo, surge o Diabo, que mais parecia um tengu e, sussurrando em seu ouvido esquerdo, disse:

– Tudo é vão…

O Filósofo abriu os olhos lentamente e respondeu:

– Não existem aliados ou inimigos.

– Todos são transformados em marcos, disse o Diabo.

– É estranho pensar nisso.

– E o que você acha de tudo isso?

– Que tudo não passa de uma formidável ilusão. Onde está a ilusão, na morte ou na vida?

O Diabo não soube responder.

Então o Filósofo se levantou lentamente e, em tom sereno, continuou:

– A ilusão é real. A compreensão também. Pois, se você compreender que ambas são ilusões, este mundo deixaria de existir. Uma pessoa que empenha a vida a serviço de outra não pode dar-se ao luxo do niilismo. Pois como seria possível haver vassalagem se o vassalo se deixar impressionar pela impermanência das coisas e se desgostar do mundo?

Olhou para o Diabo e depois para as colinas.

– Eu já me decidi: atravesso para o lado de lá!

E caminhando a passos lentos, prosseguiu:

– Pronto, voltarei ao meu velho e conhecido mundo!

Ao dizer essas palavras, o Diabo e tudo o mais deixou de existir.

Um conto maia

Era uma vez…

Um Homem que se encontrava sozinho no alto de uma colina, consumido pela tristeza.

Então todos os animais se aproximaram dele e disseram:

– Não gostamos de vê-lo tão triste. Peça o que quiser e você o terá.

O Homem disse:

– Quero ter a vista boa.

O falcão respondeu:

– Você terá a minha.

E o Homem disse:

– Quero ser forte.

E o jaguar respondeu:

– Você será forte como eu.

Então o Homem disse:

– Há muito tempo que quero saber os segredos da terra.

A serpente respondeu:

– Eu os mostrarei a você.

E assim foi com todos os animais.

E quando o Homem recebeu todos os dons que os animais podiam lhe dar, ele foi embora.

Então a coruja disse aos outros animais:

– Agora que o Homem sabe muito e pode fazer muitas coisas, de repente eu fiquei com medo.

O cervo disse:

– O Homem tem tudo o que precisa. Agora sua tristeza findará.

Mas a coruja respondeu:

– Não. Eu vi um vazio no Homem, profundo como a fome que ele nunca saciará. É isso que o deixa triste e o que o faz querer sempre mais. Ele continuará tomando até o dia em que o Mundo dirá: “Eu não existo mais e não me sobrou nada pra dar…”.

Era uma vez…

Um garoto que vivia há dezenas de anos a sua frente. Falava pouco pois quando falava seus coleguinhas se irritavam, não com ele, mas consigo mesmos por não conseguirem entender absolutamente nada do que nosso heroi dizia e então davam as costas a ele.

O tempo passou e nosso heroi cresceu e se tornou um belo rapaz, sempre anos luz a frente do seu tempo, por isso sempre quieto. Encontrou um lugar na Academia. Graduou-se em Ciências Sociais, fez mestrado, doutorado, publicou teses em que prediziam um futuro obscuro para o seu povo. Era chamado pejorativamente de “Profeta” mas suas predições do futuro tinham como base a Ciência e não ossos de galinha, borra de café e coisas do gênero. Mesmo assim era ridicularizado.

Dizia o nosso heroi aos seus conterrâneos que o que eles estavam vendo e vivendo eram apenas sombras projetadas na parede e que fora da caverna havia um mundo novo, que além do horizonte havia um lugar… mas era inútil. Eles insistiam em acreditar que a Terra era plana, que havia um deus que tudo via, tudo sabia e que se não fizessem o que esse deus mandava iriam todos parar em um lugar horrível chamado inferno. O nosso heroi dizia que não, que isso não existia, que tudo isso não passava de ilusão, de alienação. E foi ridicularizado por isso.

O tempo passou e o governante desse povo liberou o porte de arma de fogo. Noso heroi comprou uma. Municiou com apenas uma bala e deu um tiro na boca. Ninguém sentiu sua falta. Apenas uma notinha de rodapé em um jornaleco mequetrefe. Lamentaram, isso sim, o desperdício:

– Ora, veja só. Que desperdício de bala.
– Pois é…
– A munição é mais cara que a arma.
– Pois é…

E veio mais uma vez o imperativo do tempo. O povo foi enfraquecendo, adoecendo, se fragmentando em pedacinhos até que todos viveram infelizes para sempre…

Fim

Terceira Carta – Voltando pra Clínica

Meu caro amigo,

 

Faz uma semana que voltei pra clínica. Acho que essa é outra boa notícia, pois eu já estava começando a perder o controle sobre mim mesmo e, além do mais, aqui eu não me sinto tão sozinho.

Tudo começou depois que as vozes me diziam pra eliminar os demônios que haviam entrado no corpo dos cachorros do Paulinho e da Amanda, os filhos do seo Agenor, meu vizinho. Eu tentei resistir a essas vozes, mas elas continuavam e me alertavam que se eu não matasse aqueles cachorros eles, os demônios, matariam as crianças e todos naquela casa. Então, em uma noite (já passava da meia-noite), eu, munido de uma faca daquelas de matar porco, pulei o quintal do seo Agenor e esfaqueei aqueles cães. Os demônios são muito astutos, meu caro amigo, e eles tentaram disfarçar sua maldade quando aqueles animais, ao me ver no quintal, vieram em minha direção abanando o rabinho, mas não conseguiram me enganar pois pude ver em seus olhos a influência maligna que os dominavam. Tive que dar quatro facadas no Tostão e apenas duas na Pituca… Acho que o barulho acordou o seo Agenor e depois que a luz do quintal acendeu ele apareceu na porta e, lembrando agora do fato, percebi que ele ficou bem assustado com a aquela cena. Eu, com a faca na mão e todo ensanguentado, me aproximei dele e disse: “Eles estavam possuídos por demônios e iam matar as crianças e todos vocês. Mas agora o senhor pode ficar tranquilo que já dei um jeito nisso”. O pobre coitado, boquiaberto e pasmo, pediu gentilmente que eu fosse embora e sugeriu que eu voltasse pra clínica  a fim de intensificar meu tratamento. Ele me conhece há muito tempo e sabe que eu sou esquizofrênico paranoide e acho que isso contribuiu pra que ele pegasse leve comigo. Ainda bem, né? Imagina se fosse com outra pessoa?

Meu caro amigo, sei exatamente a dimensão da minha loucura e voltar pra cá foi uma ótima decisão uma vez que, se eu continuasse a dar ouvidos aquelas vozes, provavelmente alguém iria acabar se machucando e esse alguém certamente seria eu. Fico muito feliz e grato por poder estar contando tudo isso a você e de ter você como amigo. Isso tem contribuído muito no meu tratamento.

Por acaso você tem notícias da Sofia? Sinto saudades dela. Como será que ela está? Se souber algo a respeito, por favor, me diga. Tenho pensado muito nela ultimamente mas, como havia dito em uma das catas, é melhor manter distância. Pelo menos por enquanto.

E você, como tem passado? Quais as novidades? A Catarina já está indo pra escola?

Bem, meu caro amigo, vou ficando por aqui. Daqui a pouco tenho uma consulta com o Dr. Albieiro e não quero me atrasar. Mande notícias mas tome muito cuidado com o que você irá escrever. Eles leem as cartas antes de entregar e é bem provável que haja terroristas aqui disfarçados de enfermeiros e dependendo do que você disser nas cartas eles podem usar isso contra você e toda a sua família.

Um forte abraço do seu amigo que sempre te estimou,

F.O.

Segunda Carta – Relógio Carrilhão Herweg

Meu caro amigo,

 

Você não vai acreditar no que eu descobri. Sabe a minha vizinha, a Dona Lucinda? Descobri que o relógio de parede dela é uma bomba. Você deve estar se perguntando como. Pois bem, vou lhe contar:

Ela me pediu pra montar umas prateleiras na sala dela; fui lá e, enquanto perfurava a parede – o relógio dela é um carrilhão Herweg, modelo bem antigo, daqueles de corda -, não pude deixar de ouvir o “tic tac tic tac”, o mesmo “tic tac” que eu ouvi há um ano quando morava com meus pais e eu sabia, eu sabia que eles haviam voltado, os mesmos terroristas de um ano atrás: eles voltaram, meu caro amigo, eles voltaram! Então parei de perfurar a parede e me olhei pro relógio. Disse a Dona Lucinda pra sair imediatamente de casa, pois eu sabia que aquele relógio era na verdade uma bomba. Ela me olhou assustada, com os olhos arregalados. Era óbvio que a pobre coitada não sabia de nada. “A senhora tente manter a calma que eu vou dar um jeito nisso”, eu disse a ela. Mas ela se recusou a sair! “Dona Lucinda, isso é sério, tem uma bomba no seu relógio de parede, a senhora saia daqui imediatamente, deixe que eu cuido disso”, insisti. Mas a pobre velhinha não saía. Foi aí que eu resolvi tomar medidas drásticas: era muito arriscado, mas mesmo assim fui correndo pra cozinha, peguei um rolo de abrir massa e destruí completamente o relógio. Poderíamos ter morrido, eu sei. Mas deu tudo certo, ainda bem, pois creio que a bomba ainda não estava programada para explodir e eu a destruí antes que o pior pudesse acontecer.

Mas infelizmente as pessoas são muito mal-agradecidas e com a Dona Lucinda não foi diferente. Eu salvei a vida dela e mesmo assim ela me xingou e berrou a plenos pulmões dizendo que eu era um louco varrido e que isso não se faz e etecetera e etecetera. Acabou que me expulsando de sua casa e ameaçando chamar a polícia e dizendo que aquele relógio era herança do seu avô…

Contei tudo pro Dr. Albieiro e ele acabou que aumentando as doses de medicamentos…

Não tem sido fácil, meu caro amigo, mas eu não desisto da batalha, não vou me entregar, ah não, isso jamais! Pedi desculpas a Dona Lucinda pelo equívoco, mas ela não aceitou muito bem. Entendo perfeitamente. Aquele relógio tinha um valor e tanto… Vida que segue, não é mesmo?

Bem, meu caro amigo, vou ficando por aqui. Cuidado, muito cuidado com os terroristas. Eles estão por toda parte, disfarçados de mecânico, de entregadores de pizza, e até de Mórmons! Fica de olho e cuide bem as sua família.

Um grande abraço do seu amigo que te ama,

F.O.

Primeira Carta – Panapaná de Borboletas Azuis

Meu caro amigo,

 

Há dois dias que não vejo mais panapaná de borboletas azuis claras infestando meu quarto, a sala e a cozinha aqui de casa. Não é uma ótima notícia?

Graças ao Dr. Albieiro, estou tomando doses bem menores de Valium (e acho que isso tem contribuído pro sumiço das borboletas) e ele também disse que estou tendo progresso significativo em minha recuperação.

Quanto a Sofia… bem… faz um mês que eu e ela terminamos. Na verdade eu a espantei com meus surtos psicóticos e tentativas de suicídio. Eu não a culpo por isso, até entendo, afinal, quem suporta ficar muito tempo ao lado de um maluco? Fiquei muito chateado no começo, mas o Dr. Albieiro me recomendou que continuasse a escrever e que isso me ajudaria a superar essa perda. E é isso o   que eu venho fazendo ultimamente. Eu a amo, gosto muito dela e nesse momento até acho bom que ela fique distante de mim. Não quero que ela se machuque, você entende? Bem, como costumam dizer por aqui, vida que segue.

Recebi o seu presente. 10 X 10.000 vezes obrigado! amo Kafka! Não sei por que algumas pessoas insistem em afirmar que Gregor Samsa se transformou em uma barata sendo que em nenhum momento do livro você encontra a palavra “barata”. O autor apenas diz que Samsa se transformou em um inseto grotesco. Acho que por isso a relação com a barata.

Bem, meu caro amigo, vou ficando por aqui. Mande lembranças minhas a Raquel. E a Catarina? Deve estar bem grandona… Espero que tudo esteja bem com vocês.

Um grande abraço do seu amigo que muito te estima,

F.O.

Através da janela redonda o garoto contemplava, estupefato, uma sala circular. A sala em si não era exatamente o que mais lhe atraía a atenção, apesar de ela não se parecer em nada com nenhum outro cômodo ao qual ele tenha visto ou se lembrado durante seus nove anos de vida. O que, na realidade, lhe fascinava eram os objetos dispostos nesse cômodo: haviam contas e ossos, e penas e o que pareciam ser berloques e vários outros badulaques pendurados ou suspensos no ar, pois a sala parecia não ter teto. Diversas prateleiras e estantes se espalhavam de forma desordenada mas não bagunçada pelo aposento. Em uma delas pôde ver o que parecia ser um crânio de algum animal, talvez um lagarto ou um jacaré… não… era muito grande pra ser de um jacaré. De um crocodilo talvez? Não sabia. Várias compotas se encontravam dispostas nas prateleiras das estantes de maneira organizada. Em uma delas havia um líquido amarelado e, imerso nesse líquido, viu algo parecido com um homenzinho. Ao lado de uma das estantes se encontrava uma vassoura de palha com o cabo retorcido feito do que parecia ser de uma madeira muito envelhecida. Mas um objeto em particular lhe chamou muita a atenção: na parede em frente a janela, havia uma lareira e nela se encontrava um caldeirão e, dentro desse caldeirão, tinha um líquido vermelho e viscoso semelhante a geléia de morango mas com um vermelho mais denso. Aquela pasta vermelha e viscosa despertava no garoto certa curiosidade pois lhe parecia ser muito suculenta e gostosa. Seus ohos brilhavam e sua boca salivava ao admirar o conteúdo daquele caldeirão.

De repente, como num estalo, o garoto despertou e voltou a si. Olhou ao redor, sentindo-se um pouco perdido… por quanto tempo ficara a contemplar aquela sala? Já estava anoitecendo. Desceu do caixote ao qual usara para olhar pela janela, pegou sua bola e, no momento em que estava saindo daquele terreno mal cuidado, sentiu uma leve brisa gélida atingir a sua nuca arrepiando toda a coluna vertebral. Imediatamente o garoto ficou paralisado. Em seguida ouviu um sussurro, uma voz bem baixinha falando ao pé do seu ouvido: “Venha…”.

Depois desse episódio, o menino nunca mais em toda sua vida voltou áquela casa em forma de beterraba.

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Estige

Sentia como se stivesse na barca de Caronte. Mas não era, era uma Kombi branca com o motorista e mais três almas que nunca vi na vida. Passava por ruas que também nunca vi, estradas de terra sem nome e sem placa, ladeadas por pastos secos e uma ou outra pequena indústria. O motorista era era velho, arcado e esquelético que lembrava muito um urubu doente – era Caronte.

Ninguém falava nada, nem tossia, espirrava ou pigarreava, eu memo não conseguia articular uma palavra – estava emocionalmente mudo ou morto, não me lembro.

Chegamos a outra ponta da estrada. A Kombi-Barca parou, o motorista Caronte, eu e as outras almas descemos e seguimos cada um pro seu quarto de luz.

caronte

Manhã dominical

Era um daqueles domingos de churrasco, piscina e macarronada na casa da avó. Céu claro, sem nuvens, solzinho iluminando, sem preconceito, as mentes mentecaptas e brilhantes.

Saiu pra comprar pão e viu pessoas. Pessoas aparentemente felizes, contagiadas pela beleza bucólica do domingo churrascal. Parecia que todas as pessoas tinham cara de domingo. Menos ele. Seu peito estava nublado. A boca seca. Os ombros caídos. Pediu quatro pães sem olhar para a balconista, sem elevar a voz, assim bem mecanicamente.

Seus pensamentos não estavam na padaria, não estavam no domingo, nem no churrasco, nem nas faces dominicalmente felizes. Estavam nela. Era injusto essa discrepância: as pessoas felizes, carregando sacos de carvão, engradados de refrigerante e cerveja, rindo, gesticulando, famílias se divertindo nas áreas de suas casas, músicas alegres, sol com rosto de bebezinho rindo e balbuciando enquanto que ele, nesse dia tão campesino, não estava com ela. E talvez nem fosse estar.

Um dia sem ela não era um dia, era um vácuo.

churras

Um dia lindo

Fazia um lindo dia lá fora. Ao olhar para o céu e senti aquela pulsão lacaniana – uma verdadeira obra de arte.
Eu estava feliz. Ia me encontrar com o amor da minha vida. Estava tudo pronto: banho tomado, dente escovado, roupa limpa. No instante em que eu ia abrir a porta para mergulhar naquele mar de amor e satisfação emanado pelos raios de sol, o telefone tocou. Era ela, o meu amor. Disse que não poderia ir, que teria que resolver negócios pendentes com o ex (ou atual) namorado. Estavam há três anos em meio no vai-e-volta, no chove-e-não-molha. Eu aceitei a sisituação. Disse que tudo bem, sem problemas. Se isso a fazer se sentir melhor…
Ao desligar o telefone, me senti como Belerofonte – caí do cavalo. Logo em seguida ao sentimento de derrota, alguém bate à porta. Pergunto quem é. “A Angústia”, responde uma voz roca lá de fora. Me sento à mesa, com uma jarra e um copo d’água, acendo um cigarro e mando entrar. Ela se aproxima com uma caixa de bombons debaixo do braço. Coloca a caixa em cima da mesa, senta e começa a deturpar meus pensamentos. Então eu me levanto, ergo minha cabeça e dedo em riste, digo com propriedade:
– Eu a amo! A amo do jeito que ela é e sim, eu aceito a nossa situação!
O monstro babão esbugalhou seus olhos vermelhos, se levantou, ameaçou pegar a caixa d bombons mas imediatamente eu a repreendi:
– Tira as patas! Vou dividir com a Melancolia.
Meia hora depois estávamos eu e a Melancolia, dividindo lágrimas e chocolate.